'Descompasso' entre governo e BC dificulta controle da inflação e pressiona taxa de juros; entenda
17/05/2025
(Foto: Reprodução) Governo Lula impulsionou os gastos públicos, apesar da aprovação do arcabouço fiscal. BC, comandado por Galipolo, diz que apenas reage ao cenário da economia, que despesas estimulam a inflação e pede mais 'harmonia' com política monetária (definição dos juros). Com a proximidade das eleições presidenciais em 2026, o governo está pisando no acelerador e anunciando ações para estimular a economia. Entre elas estão:
liberação de recursos retidos no FGTS;
novas regras para crédito consignado ao setor privado; e
ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda.
Passa a valer hoje (16) novidade na portabilidade do consignado para trabalhadores CLT
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem repetido que busca uma expansão média do Produto Interno Bruto (PIB) acima de 3% no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Na outra ponta, o Banco Central reforça, em declarações de autoridades e documentos oficiais, que a economia está com um ritmo de crescimento acima do chamado "PIB potencial" — aquele que é possível sem que haja pressões inflacionárias.
🔎Por isso, o BC tem repetido que é preciso "desacelerar" a atividade para conter as pressões inflacionárias.
▶️Entenda: O Banco Central explica que sua atuação é reativa, ou seja, a instituição apenas reage ao cenário da economia. Se há um aumento de despesas, que estimula demais a economia e pressiona a inflação, por exemplo, tem que adotar uma política de juros mais agressiva.
Para determinar o nível da taxa de juros, o BC atua olhando para a frente (expectativas de inflação), tendo por base o sistema de metas. A meta de inflação é de 3%, podendo oscilar entre 1,5% e 4,5% sem que seja oficialmente descumprida.
Presidente Lula conversa com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em evento público
Getty Images via BBC
Descompasso
Há uma descompasso entre:
política fiscal, isto é, de gastos públicos;
política creditícia, ou seja, de empréstimos; e
política monetária — a definição dos juros para tentar conter a inflação.
E esse cenário de descompasso acontece desde o início do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). É como se fossem dois remadores puxando o barco para direções opostas.
E a consequência imediata, segundo analistas, é uma dificuldade maior em conter as pressões inflacionárias, o que levou o Banco Central, nos últimos anos, a subir mais a taxa básica de juros, e a mantê-la elevada por mais tempo.
▶️Inflação e juros mais altos significam um custo maior para quem emitiu o título e precisa remunerar o investidor – o governo, no caso dos títulos públicos. Por isso, retroalimentam um aumento da dívida pública, já considerada elevada para o padrão de países emergentes.
▶️De acordo com dados do Tesouro Nacional, R$ 3,5 trilhões da dívida pública são indexados ao juro básico da economia, enquanto outros R$ 1,1 trilhão têm a taxa prefixada (determinada no momento do leilão, mas que está próximo ao juro básico, a Selic).
▶️Com isso, um aumento de 1 ponto percentual na taxa Selic tem o impacto de cerca de R$ 45 bilhões a mais no endividamento público em 12 meses.
A dívida do setor público consolidado fechou o mês de março em 75,9% do PIB – o equivalente a R$ 9,1 trilhões, segundo informações do Banco Central.
Se for considerado o critério do Fundo Monetário Internacional (FMI), que contabiliza os títulos públicos que estão na carteira do BC e que é utilizada na comparação internacional, a dívida brasileira terminou o primeiro semestre em um patamar maior ainda: em 88,3% do PIB.
No ano passado, em meio a ataques do presidente Lula para baixar a taxa de juros da economia, o ex-presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, explicou que o juro no país é alto porque o endividamento também é elevado.
Analistas comentam
Segundo Rafael Cardoso, economista-chefe do Banco Daycoval, embora o ímpeto tenha se reduzido nos últimos meses, a política de gastos públicos foi 100% "expansionista" desde 2023 — quando assumiu o governo Lula —, por conta do aumento de benefícios sociais.
Por outro lado, a política de juros do Banco Central, durante todo esse período, ficou "contracionista", ou seja, acima da taxa neutra da economia, que é aquela que que não estimula nem freia a atividade, mantendo a inflação estável (em linha com as metas).
"Se a gente não tivesse tido a política fiscal expansionista como foi nos últimos anos, provavelmente o BC teria espaço para praticar juros menores. É claro que é muito difícil a gente fazer o contrafactual para saber quão menor poderia ter sido os juros. Mas a gente pode argumentar sim, com certeza, que quando a política fiscal mantém a demanda da atividade econômica mais forte, tem como repercussão uma postura mais conservadora do Banco Central, para equilibrar as coisas”, declarou Rafael Cardoso, do Banco Daycoval.
Rafaela Vitoria, economista-chefe do Banco Inter, afirmou que a política fiscal, relativa aos gastos públicos, atrapalha o trabalho do Banco Central na contenção da inflação.
"Esse tem sido um dos grandes problemas da inflação mais alta nos últimos oito meses, quase 12 meses, que a gente viu a inflação saindo de 3,5%, em 12 meses até maio do ano passado, e hoje já está em 5,5% e continua subindo. Muito disso é a situação fiscal. Apesar de a gente ter uma taxa de juros restritiva [14,75% ao ano], a inflação continua subindo porque a política fiscal está muito expansionista", avaliou Rafaela Vitoria, do Banco Inter.
Ela observou que, nos últimos dois anos, na gestão do presidente Lula, houve um "aumento de gastos muito significativo". "O nível de gasto anual hoje está cerca de R$ 400 bilhões, ao ano, acima do que foi em 2022 [último ano do governo Bolsonaro]".
Rafaela Vitória disse que não há necessidade de um "corte drástico" de despesas para trazer a inflação para baixo, mas sim de ter uma maior disciplina com as contas públicas para que os gastos parem de crescer.
Com esse objetivo, ela recomendou a desvinculação dos gastos em saúde e educação das receitas e o fim do aumento real (acima da inflação) do salário mínimo —políticas que eram praticadas também no governo Bolsonaro.
O que diz e faz o governo
Nesta semana, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, repetiu que é possível concluir os quatro anos de mandado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com uma taxa média de crescimento do PIB acima de 3%. "Nesse ano, mesmo com juro alto, vamos crescer 2,5%", declarou, em entrevista ao Uol. O mercado financeiro projeta uma alta menor, de 2%, para 2025.
▶️Medidas tomadas, ou anunciadas pelo governo, que estimulam a economia:
PEC da transição: governo aprovou, ainda em 2022, a chamada PEC da transição, por meio da qual ampliou o limite para gastos públicos, permanentemente, em cerca de R$ 170 bilhões por ano.
Reajuste real do salário mínimo: governo Lula retomou a política de reajustes reais do salário mínimo, ou seja, aumentos acima da inflação (limitada a 2,5%). Esse foi um dos principais fatores a elevar as despesas, visto que os benefícios previdenciários não podem ser menores que o salário mínimo.
Pisos saúde e educação: governo retomou a política de que os gastos mínimos em saúde e educação são atrelados à receita, e não mais à inflação do ano anterior (essas rubricas estavam dentro do teto de gastos, do presidente Temer, até então).
Pagamento de precatórios atrasados: o que injetou R$ 92,3 bilhões na economia no fim de 2023, início de 2024. A Fazenda admite que isso influenciou a aceleração no ritmo de crescimento do setor de serviços.
Reajustes a servidores públicos: governo retomou política de reajustes a servidores públicos, que estava represada no governo Jair Bolsonaro, com base na inflação. Houve ampla mesa de negociação com cerca de 100 categorias contempladas.
Minha Casa Minha Vida: governo anunciou nesta ano a ampliação, de R$ 8 mil para R$ 12 mil, no teto da renda das famílias que podem financiar um imóvel pelo programa, em um aceno à classe média.
Liberação de saque-aniversário do FGTS que estava retido: pagamento aos trabalhadores que optaram pela modalidade de saque-aniversário e foram demitidos sem justa causa entre janeiro de 2020 e fevereiro de 2025. Medida injetou R$ 12 bilhões na economia.
Consignado do FGTS ao setor privado: governo anunciou nova linha de crédito ao setor privado com desconto em folha de pagamento e garantia do FGTS. Modalidade já atingiu R$ 10 bilhões, governo diz que crédito pode chegar a R$ 100 bilhões.
Ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda: governo enviou ao Congresso, que ainda debaterá o assunto, proposta de ampliar a faixa de isenção do IR para até R$ 5 mil, e de que rendas entre R$ 5 mil e R$ 7 mil paguem menos IR. Se implementada, deixa mais recursos nas mãos da classe média.
▶️Arcabouço fiscal
Por outro lado, o governo aprovou, em 2023, o chamado "arcabouço fiscal" que, em tese, deveria conter os gastos públicos (a um aumento acima da inflação de até 2,5% ao ano) e, com isso, conferir sustentabilidade à dívida pública — que, pelas projeções oficiais, passaria a cair dentro de alguns anos.
Para manter a regra fiscal de pé, entretanto, o governo deveria promover um corte de gastos obrigatórios (como gastos previdenciários, servidores, ou vinculado ao seguro-desemprego e abono salarial, por exemplo). Para isso, deveria enviar leis ao Congresso Nacional.
Pressionado pelo mercado, o governo enviou, e aprovou no fim do ano passado, um corte de gastos, focado no ritmo de crescimento do salário mínimo e no abono salarial, entre outros.
Entretanto, a medida não foi suficiente para manter a sustentabilidade das contas públicas. Diante do forte ritmo de gastos obrigatórios (impulsionado pelo reajuste real do salário mínimo e pela retomada dos pisos em saúde e educação), o governo admitiu que há há risco de paralisia da máquina pública em 2027.
Para especialistas em contas públicas, sem o governo ter feito um corte de gastos mais profundo, o arcabouço fiscal já se tornou insustentável. A dúvida é mais sobre "quando" será feita uma nova reforma para substituir o atual arcabouço. Isso retira a previsibilidade sobre a trajetória da dívida pública e pressiona os juros.
De acordo com Rafael Cardoso, economista-chefe do Banco Daycoval, se há perspectiva de que o arcabouço pode ser desfeito, isso pressiona os prêmios de risco (retorno adicional que os investidores exigem para investir em ativos brasileiros).
"Eu acho que o mais claro é a gente observar propriamente as expectativas de inflação, por exemplo, colhidas pelo boletim Focus. Ali a gente consegue ver de forma mais clara como as expectativas em torno do fiscal se materializam em uma inflação mais alta no futuro e, portanto, em juros esperados também mais elevados para o futuro", acrescentou ele.
Para a economista Rafaela Vitoria, do Banco Inter, o arcabouço fiscal não está conseguindo conter o crescimento de gastos no limite de 2,5% ao ano acima da inflação, que era a proposta original do governo, por conta dos gastos fora da regra — como os precatórios, por exemplo.
"O arcabouço está começando a mostrar, no seu terceiro ano, que é insustentável porque o gasto obrigatório cresce em um ritmo acima de 2,5%. Então, para que ele tenha o gasto total no limite de 2,5%, precisa cortar despesa discricionária. Isso não é sustentável. Então a gente volta a ter o mesmo problema que a gente tinha no teto de gastos [vigente nos governos Temer e Bolsonaro]. A necessidade é de rever esse crescimento das despesas obrigatórias para que o arcabouço funcione", concluiu ela.
Posição do Banco Central
Gabriel Galípolo, presidente do Banco Central, no Senado Federal
Ton Molina/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Enquanto o a área econômica mira um crescimento médio acima de 3% ao ano na gestão Lula e tem anunciado ações para estimular a economia com a proximidade das eleições, o Banco Central mostra clara preocupação com o ritmo da atividade.
O BC tem dito claramente que uma desaceleração, ou seja, um ritmo menor de crescimento da economia, faz parte da estratégia de conter a inflação no país. Avalia que isso é um "elemento necessário para a convergência da inflação à meta [de inflação, de 3%]".
"Temos que desacelerar um pouco a economia. O PIB veio um pouco mais fraco do que o esperado. Há sinais que estamos vendo sinais de moderação [da atividade econômica]", acrescentou o diretor do BC, Diogo Guillen, em março.
Entre os motivos para a inflação alta, o BC tem listado a resiliência do nível de atividade, o mercado de trabalho aquecido, a alta de gastos públicos e o cenário internacional, que pressionou o dólar no fim do ano passado.
No fim de abril, o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, afirmou que os sinais de desaceleração da economia ainda eram muito iniciais e que seria necessário manter vigilância sobre o comportamento dos preços.
▶️Na ata da última reunião do Copom, divulgada nesta semana, o BC informou que o chamado "hiato do produto" segue positivo. Isso quer dizer que a economia continua operando acima do seu potencial de crescimento sem pressionar a inflação.
A instituição também tem confirmado que a política fiscal (relativa às contas públicas) tem estimulado a economia. "Um estímulo significativo nos últimos anos adveio da política fiscal", informou o BC na ata da última reunião do Copom.
O Banco Central também informou que o juro alto já contribui para desaceleração da atividade e que impacto na geração de empregos deve se aprofundar. O mercado financeiro, por sua vez, deixou de acreditar em novas altas de juros neste ano.
"O Comitê segue utilizando a política fiscal [relativa às contas e aos gastos públicos] como insumo em sua análise e, dada a política fiscal corrente e futura, adotará a condução de política monetária [definição dos juros] apropriada para a convergência da inflação à meta", explicou o Banco Central.
Ainda na ata do Copom, divulgada nesta semana, a autoridade monetária reiterou a importância de haver uma "harmonia" entre a definição dos juros para conter a inflação e a política fiscal (relativa aos gastos públicos).
"O Comitê, em sua análise de atividade, manteve a firme convicção de que as políticas devem ser previsíveis, críveis e anticíclicas. Em particular, o debate do Comitê evidenciou, novamente, a necessidade de políticas fiscal e monetária harmoniosas", concluiu a instituição.